Transparência patrimonial no Divórcio: O Direito de saber e a luta contra a violência patrimonial
Nas famílias brasileiras, ainda prevalece uma divisão tradicional de tarefas: as mulheres são responsáveis pela casa e pelos filhos, enquanto os homens assumem a manutenção financeira do lar. Embora atualmente existam casos em que essa dinâmica se inverte, ou seja, homens se dedicam aos cuidados da prole e da casa, é comum que quem se dedica aos deveres do cuidado, na maioria das vezes, não possua conhecimento aprofundado sobre investimentos e finanças domésticas.
Frequentemente, em nosso escritório, observamos clientes que assinam documentos com base na confiança no cônjuge, sem sequer ler o conteúdo do que lhes foi apresentado. Ao final, não se tem exatidão sobre os bens que a família possui, nem mesmo sobre dívidas, contratos bancários e demais questões econômicas e financeiras.
Nessas circunstâncias, é comum que, na hipótese de divórcio, seja requerida a quebra de sigilo bancário e fiscal da parte contrária. Isso permite, com base nos princípios da igualdade, solidariedade e boa-fé, verificar os bens e dívidas em nome do ex-casal, possibilitando a partilha dentro das hipóteses legais.
A meu sentir, com a devida vênia àqueles que pensam de forma diversa, inexiste o direito de o cônjuge casado sob regime de comunhão parcial ou total de bens opor sigilo patrimonial ao outro, na medida em que a regra é que tudo aquilo que foi adquirido durante o casamento, salvo exceções pontuais, integra a partilha.
Negar a qualquer dos cônjuges o direito de se informar sobre o patrimônio adquirido na constância do casamento viola princípios fundamentais da dignidade humana, além da isonomia, paridade de armas, cooperação, boa-fé e comportamento contraditório.
Baseado nesses princípios e na norma que regulamenta os regimes de comunhão parcial e total de bens, entendo que, mesmo na hipótese de se supor que os documentos incompletos juntados aos autos possam, em tese, comprovar eventual patrimônio do casal na época da separação de fato, se a parte interessada ainda desejar ter acesso às informações completas sobre o patrimônio, tal direito lhe é assegurado.
Durante a relação conjugal, vigora entre os cônjuges o chamado princípio da solidariedade. Paulo Lôbo ensina que “a solidariedade do núcleo familiar compreende a solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros, principalmente quanto à assistência moral e material. O lar é por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência e de cuidado” (Disponibilizado em IBDFAM, acesso em 10/01/2024).
Portanto, torna-se essencial reconhecer que o direito ao acesso a informações sobre o patrimônio comum, constituído durante o casamento, é prerrogativa assegurada pelo princípio da solidariedade conjugal. Este princípio confere ao acesso a tais informações uma dimensão que ultrapassa a esfera de um simples direito, elevando-o à condição de um dever recíproco entre os cônjuges. A interação baseada no compartilhamento de informações é fundamental para a colaboração mútua, garantindo que ambos os cônjuges detenham conhecimento adequado e abrangente sobre o patrimônio responsável pelo sustento da unidade familiar.
O dever de transparência patrimonial, vinculado ao princípio da solidariedade, implica na renúncia ao direito à intimidade enquanto perdurada a relação conjugal. Conforme leciona Maria Berenice Dias, “os cônjuges têm o dever de revelar todos os seus bens, direitos e dívidas no momento da partilha” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 2019, p. 532).
Os argumentos que justificam o acesso à informação não se limitam apenas aos já mencionados. O direito à ampla defesa e ao contraditório, pilares fundamentais do sistema jurídico, também autorizam e reforçam a necessidade desse acesso. Afinal, como é possível que a parte exerça adequadamente sua defesa e garanta seus direitos sobre o patrimônio em disputa se informações cruciais sobre tal patrimônio estão sob controle do ex-cônjuge, que se recusa a compartilhá-las, contando com o respaldo do Poder Judiciário?
Neste contexto, é importante recordar que, nos termos do art. 369 do CPC, as partes “têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. A negativa de acesso à informação, além de cercear a defesa, impede a busca pela verdade sobre o patrimônio, representando não apenas uma insegurança jurídica, mas também um descrédito ao esperado do Judiciário.
Quando se trata da negativa de acesso às informações patrimoniais, nada mais razoável do que invocar a aplicação do art. 7º do CPC, que dispõe que “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. Deixar o acesso às informações patrimoniais exclusivamente a uma das partes é, indubitavelmente, clara violação a tal norma.
Acrescenta-se ainda a inequívoca necessidade de invocar o art. 6º do CPC, segundo o qual “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. A referida norma impõe um modelo cooperativo de processo, sendo corolário de outros dois princípios: o devido processo legal (art. 1º do CPC) e a boa-fé (art. 5º do CPC). Além disso, não vincula apenas o juízo, mas também as partes e todos aqueles que, de qualquer forma, participam do processo, afinal, “Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade” (art. 378 do CPC).
Outra justificativa para o acesso à informação patrimonial diz respeito ao princípio da proporcionalidade. Este princípio analisa a relação entre os meios utilizados e os fins desejados, exigindo que as medidas sejam adequadas, necessárias e proporcionais (em sentido estrito) aos objetivos que se pretende alcançar, com uma estrutura formal e objetiva de análise.
Com a devida vênia, a negativa de acesso à informação patrimonial não é compatível com a finalidade da partilha, pois a falta de acesso completo às informações financeiras de um dos ex-cônjuges impede uma avaliação correta do patrimônio a ser partilhado, podendo resultar em uma divisão desigual e injusta dos bens.
Utilizar o sigilo fiscal para obstruir a revelação dos fatos infringe princípios fundamentais, tais como igualdade, solidariedade, honestidade, colaboração, direito de buscar a verdade, direito ao contraditório e à ampla defesa. Esta abordagem viola ainda direitos críticos, incluindo o acesso à informação e a dignidade.
A negativa de compartilhar informações sobre o patrimônio comum não apenas impede a parte de compreender plenamente o contexto patrimonial do ex-cônjuge, mas também a priva do direito de lutar e possuir aquilo que é seu por direito
Sob essa ótica, tal privação caracteriza, a meu sentir, clara violência patrimonial, definida como qualquer ato que resulte na retenção, subtração ou destruição, parcial ou total, de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos destinados a satisfazer as necessidades da vítima.
Conclui-se, portanto, que o acesso às informações patrimoniais no contexto de uma relação conjugal não é apenas um direito, mas um dever recíproco que reflete os princípios de solidariedade, transparência e cooperação que devem reger a vida em comum. Negar esse acesso implica em obstruir o direito à verdade, à igualdade e à ampla defesa, ferindo valores essenciais como a dignidade humana e a justiça.
Ademais, a retenção de informações patrimoniais configura clara violência patrimonial, privando um dos cônjuges de exercer plenamente seus direitos sobre o patrimônio adquirido na constância do casamento. Essa prática não pode ser tolerada pelo Poder Judiciário, que tem o dever de garantir um processo justo e colaborativo, pautado pela boa-fé e pela busca da verdade. Somente assim será possível assegurar uma partilha equitativa e respeitosa, reafirmando os valores que sustentam um sistema jurídico comprometido com a dignidade e a justiça.
Por Larissa Waldow
Especialista em Direito das Famílias e Sucessões
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