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Contratos no Direito do Trabalho e suas alterações diante do Covid-19

  1. Introdução

A Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto Lei 5.452/43) prevê, em seu artigo 442, que o contrato individual de trabalho é “o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”.

Seja um acordo tácito ou expresso, escrito ou verbal, o contrato de trabalho é de trato sucessivo, de modo que, muito embora haja uma determinação imposta pelo sistema jurídico de um conteúdo mínimo para a formação contratual, essa determinação não faz com que deixe de existir certa autonomia de cada uma das partes no transcorrer da celebração contratual, quando serão pactuadas as condições do contrato laboral.

E, justamente por ser um contrato de trato sucessivo, tem-se que não raras as vezes que os contratos precisam passar por alterações para que possa se adequar às constantes mudanças socioeconômicas. Mas, o que pode ser alterado? Como identificar a linha tênue que separa a legalidade da ilegalidade das alterações contratuais?

Estas dúvidas mais do que nunca estão em voga em razão da publicação do Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020 que reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública em razão em decorrência da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (COVID-19) fazendo surgir, desde então, Medidas Provisórias que impactam diretamente no relação de trabalho.

  1. Covid-19 e as alterações nos Contratos de Trabalho

Após reconhecimento do estado de calamidade em razão da COVID-19, o Governo Federal editou a Lei 13.979/2020, com o objetivo de dispor sobre as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Com isso, a referida norma estabeleceu medidas de isolamento social como forma de conter a propagação do vírus trazendo impactos na economia e, como não poderia ser diferente, com reflexos diretos nos trabalhadores.

Diante desde cenário, passou ser imperiosa a meditação sobre como seria possível preservar os postos de trabalhos e direitos dos trabalhadores sem que isso implicasse na inviabilidade econômica das empresas. E a resposta data pelo Governo para esta equação foi a edição de algumas Medida Provisórias que passaram a prever a alteração nos contratos de trabalho.

  1. A Medida Provisória 927 e as alterações no contrato de trabalho

A primeira Medida Provisória a prever a alteração dos contratos de trabalho foi a Medida Provisória 9271, de 22 de março de 2020, sendo alterada pela MP 928 no dia seguinte a sua publicação.

A MP 927 dispõe, especificamente, sobre as “as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública”, e prevê que sua aplicação durante o estado de calamidade previsto pelo Decreto Legislativo nº 6/2020.

Já em seu artigo 2º, a referida Medida Provisória prevê que o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição2.

Já em seu artigo 3º, a Medida Provisória 927 prevê as seguintes medidas que poderão ser adotadas pelo empregador para fins de resguardar o emprego:

  1. i) o teletrabalho

O Teletrabalho é previsto pela legislação trabalhista (CLT), que em seu artigo 75-A a 75-E prevê o teletrabalho como um serviço prestado preponderantemente extra muros, ou seja, fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação.

Como principais inovações trazidas pela referida MP, podemos citar a alteração do regime de trabalho, de presencial para o teletrabalho, trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância, sem que haja necessidade de consentimento do empregado para esta alteração, a possibilidade de o empregador, a seu critério, determinar o retorno ao trabalho presencial, sem necessidade de observância do prazo de transição previsto na CLT, bem como a desnecessidade de alteração da Carteira de Trabalho.

  1. ii) a antecipação de férias individuais

A CLT prevê que as férias devem ser concedidas nos 12 (doze) meses subsequentes à data em que o empregado tiver adquirido o direito, sendo comunicadas com, no mínimo, 30 dias de antecedência, sendo vedado seu início no período de dois dias que antecede feriado ou dia de repouso semanal remunerado.

Por outro lado, em razão do estado de calamidade, a MP 27, a antecedência mínima para comunicação das férias é de 48 horas, podendo ser concedida ainda que não se tenha o período aquisitivo.

Não obstante, a referida Medida Provisória prevê a possibilidade do empregador e do empregado negociarem, mediante acordo individual, períodos futuros de férias.

Já o pagamento das férias foi flexibilizado pela MP ao permitir que o empregador quite o terço de férias após sua concessão, até a data em que é devida a gratificação natalina, ou seja, até 20 de dezembro. Ademais, a referida Medida Provisória  também afasta a incidência do artigo 145 da CLT para estipular que o pagamento da remuneração das férias concedidas em razão do estado de calamidade pública poderá ser efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias.

iii) a concessão de férias coletivas

Sobre as férias coletivas, a CLT prevê que estas poderão ocorrer em até 2 (dois) períodos anuais desde que nenhum deles seja inferior a 10 (dez) dias corridos, estabelecendo que o empregador deverá comunicar ao órgão local do Ministério da Economia (antigo Ministério do Trabalho), com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias, as datas de início e fim das férias, precisando quais os estabelecimentos ou setores abrangidos pela medida enviando, neste mesmo prazo, cópia da aludida comunicação aos sindicatos representativos da respectiva categoria profissional, e providenciará a afixação de aviso nos locais de trabalho.

A MP 927 flexibiliza tais regras, dispensando a comunicação prévia das férias coletivas ao órgão local do Ministério da economia e aos sindicatos, podendo  conceder férias coletivas desde que os empregados afetados sejam notificados  com antecedência de, no mínimo, quarenta e oito horas, não sendo aplicáveis o limite máximo de períodos anuais e o limite mínimo de dias corridos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho.

  1. iv) o aproveitamento e a antecipação de feriados

A MP 927 trouxe a previsão de antecipação do gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e municipais. Nestes casos, os empregados deve ser notificados por escrito ou por meio eletrônico com antecedência de, no mínimo, 48 horas, mediante indicação expressa dos feriados aproveitados.

Nos casos de feriados religioso, somente é possível seu aproveitamento mediante manifestação em acordo individual escrito.

  1. v) o banco de horas

A CLT prevê que o banco de horas anual deve ser feito por meio de acordo coletivo ou, em caso de banco de horas cuja compensação ocorra no período máximo de seis meses, seja feito mediante acordo individual.

A MP 927 prevê que o acordo para compensação de banco de horas poderá ser feito mediante acordo coletivo ou individual e o prazo para a compensação será de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública. Não obstante, a referida MP prevê a compensação de tempo para recuperação do período interrompido mediante prorrogação de jornada em até duas horas, que não poderá exceder dez horas diárias bem como a desnecessidade de convenção coletiva ou acordo individual ou coletivo para a compensação do saldo de horas.

  1. vi) a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho

A Medida Provisória 927 dispensa, durante o estado de calamidade, a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares e a realização de treinamentos periódicos e eventuais dos empregados, previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho. Fora isso, o exame demissional poderá ser dispensado caso o exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de 180 dias.

No caso dos exames médicos, estes terão que ser realizados em até 60 dias após o término do estado de calamidade enquanto os treinamentos deverão ser realizados em até 90 dias.

vii) o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS

A MP suspendeu a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente. Desta forma, o recolhimento das competências de março, abril e maio de 2020 poderá ser realizado de forma parcelada, sem a incidência da atualização, da multa e dos encargos previstos no artigo 22 da Lei 8.036/1990.

O pagamento destas obrigações serão quitadas em até seis parcelas mensais, com vencimento no sétimo dia de cada mês, a partir de julho de 2020. No caso de rescisão do contrato de trabalho, a suspensão prevista pela MP ficará resolvida e o empregador ficará obrigado: (1) ao recolhimento dos valores correspondentes, sem incidência da multa e dos encargos devidos; e (2) ao depósito dos valores previstos no artigo 18 da Lei 8.036/1990. Neste caso, as eventuais parcelas vincendas terão sua data de vencimento antecipada para o prazo aplicável ao recolhimento previsto no artigo 18 da Lei 8.036/1990.

viii) Estabelecimentos de saúde

Ainda sobre as alterações nos contratos de trabalho, a MP traz, em seu artigo 26, a possibilidade dos estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e para a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso prorrogar a jornada de trabalho e adotar escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada, sem que haja penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado. Prevê, a referida MP, que as horas suplementares poderão ser compensadas, no prazo de dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, por meio de banco de horas ou remuneradas como hora extra.

  1. iv) Convenções Coletivas

Dispõe, o artigo 30, que Os acordos e as convenções coletivos vencidos ou vincendos, no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, poderão ser prorrogados, a critério do empregador, pelo prazo de noventa dias, após o termo final deste prazo.

x)Abrangência

Por fim, o artigo 32 da Medida Provisória 927 dispõe que sua aplicabilidade alcança as relações de trabalho regidas pelas Leis 6.019/74, abrangendo trabalho temporário e terceirização, bem como a Lei 5.889/73, que inclui os trabalhadores rurais. Também diz que, aplica-se, no que couber, às relações regidas pela Lei Complementar 150/2015 (que trata dos trabalhadores domésticos), tais como jornada, banco de horas e férias.

Assim, podemos dizer que, resumidamente, essas são as principais medidas carreadas ao ordenamento jurídico por intermédio da entrada em vigor da MP 927/2020 que refletem diretamente no contrato de trabalho, ensejando sua modificação.

  1. A Medida Provisória 936 e as alterações no contrato de trabalho

A Medida Provisória 936, de 1º de abril de 2020, instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda dispondo sobre medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020 e da “emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Conforme disposto no artigo 2º da referida Medida Provisória, o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda tem aplicação durante o referido estado de calamidade pública e foi instituído com os seguintes objetivos: “I – preservar o emprego e a renda; II – garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais; III – reduzir o impacto social decorrente das consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública” .

São medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda: “I – o pagamento de benefício emergencial de preservação do emprego e da renda; II – a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários; III – a suspensão temporária do contrato de trabalho” (art. 3º da Medida Provisória 936/2020).

Assim, a Medida Provisória traz novas previsões de alteração do contrato de trabalho, prevendo a possibilidade de sua suspensão temporária ou, ainda, a redução proporcional da jornada de trabalho e do salário, estabelecendo que o benefício a ser pago terá como base de cálculo o valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, nos termos do art. 5º da Lei nº 7.998, de 1990.

Analisemos cada uma das medidas instituídas pela referida Medida Provisória:

  1. i) Redução proporcional do salário

A MP 936 estabelece que o empregador poderá acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, desde que haja a preservação do valor do salário-hora de trabalho e que haja acordo escrito entre empregador e empregado (acordo individual), que será encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois dias corridos.

A referida Media Provisória ainda prevê que a redução da jornada e de salário, por meio de acordo individual, será nos percentuais de 25%, 50% e 75%. Todavia, para  redução diversa destes patamares será necessário realizar acordo coletivo, aplicando a proporcionalidade ao recebimento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, prevista no artigo 11, §2º, I, II, III e IV, que dispõe:

  • 2º Na hipótese de que trata o § 1º, o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda de que trata os art. 5º e art. 6º será devido nos seguintes termos:

I – sem percepção do Benefício Emergencial para a redução de jornada e de salário inferior a vinte e cinco por cento;

II – de vinte e cinco por cento sobre a base de cálculo prevista no art. 6º para a redução de jornada e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento;

III – de cinquenta por cento sobre a base de cálculo prevista no art. 6º para a redução de jornada e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; e

IV – de setenta por cento sobre a base de cálculo prevista no art. 6º para a redução de jornada e de salário superior a setenta por cento.

Isso significa dizer que, em caso de Acordo Coletivo para redução de jornada em percentuais diferentes dos previstos na lei, não haverá o pagamento proporcional do Benefício previsto na legislação.

  1. ii) Suspensão temporária

A Medida Provisória 396 prevê, ainda, a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, por prazo não superior a 60 dias, o qual poderá ser fracionado em até dois períodos de trintas dias.

A Medida Provisória ainda dispõe que na hipótese de suspensão temporária do contrato de trabalho, o valor do benefício emergencial de preservação do emprego e da renda deve ter valor mensal: (a) equivalente a 100% do valor do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, na hipótese prevista no caput do art. 8º da Medida Provisória 936/2020 (suspensão temporária do contrato de trabalho pelo prazo máximo de 60 dias, que pode ser fracionado em até dois períodos de trinta dias); ou (b) equivalente a 70% do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, na hipótese prevista no § 5º do art. 8º da Medida Provisória 936/2020 (suspensão do contrato de trabalho de empregados de empresa que tiver auferido, no ano-calendário de 2019, receita bruta superior a R$ 4.800.000,00, com o pagamento de ajuda compensatória mensal no valor de 30% do valor do salário do empregado, durante o período da suspensão temporária de trabalho pactuado).

Portanto, nos casos de suspensão temporária do contrato de trabalho em empresas com receita bruta anual até R$ 4,8 milhões, o valor do benefício emergencial de preservação do emprego e da renda deve ser pago ao empregado no valor integral (100%) do seguro-desemprego.

Nas hipóteses de suspensão temporária do contrato de trabalho em empresas com receita bruta anual superior a R$ 4,8 milhões, o valor do benefício emergencial de preservação do emprego e da renda deve ser pago ao empregado no valor de 70% do seguro-desemprego, pois nessa hipótese o empregador deve pagar ajuda compensatória mensal no valor de 30% do salário do empregado.

Durante o período de suspensão temporária do contrato, o empregado: “I – fará jus a todos os benefícios concedidos pelo empregador aos seus empregados; II – ficará autorizado a recolher para o Regime Geral de Previdência Social na qualidade de segurado facultativo” (art. 8º, § 2º, da Medida Provisória 936/2020).

iii) Alterações contratuais comuns a suspensão e a redução da jornada

A Medida Provisória 936 prevê algumas alterações contratuais que serão aplicáveis tanto em caso de redução da jornada como nos casos de suspensão do contrato de trabalho. A primeira delas diz respeito ao percebimento de ajuda compensatória mensal, pagos pelo empregador, a qual deverá ter seu valor definido em acordo individual, terá caráter indenizatório e não integrará a base de calculo do imposto de renda, da contribuição previdenciaária e dos demais tributos incidentes sobre a folha de salário bem como do FGTS.

Não obstante, a Medida Provisória, em seu artigo 10, reconhece a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho, sendo a estabilidade garantida durante o percebimento do benefício e, após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho, por período equivalente ao acordado para a redução ou a suspensão.

Sobre a (des)necessidade de negociação coletiva, a referida Medida Provisória estabelece que tanto a suspensão quanto a redução da jornada de trabalho poderão ser feitas mediante acordo individual nos contratos em que o empregado perceba salário igual ou inferior a R$ 3.135,00 ou nos casos dos funcionários serem portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Também poderá ser feita, por acordo individual, a redução de jornada de trabalho e de salário de vinte e cinco por cento, independente do salário percebido pelo empregado.

Por fim, a Medida Provisória autoriza a cumulação da suspensão do contrato com a redução da jornada, todavia o período não pode ultrapassar 90 dias.

  1. Da alteração do contrato de trabalho

É inegável que o contrato de trabalho, por ser de trato sucessivo, não pode ser rígido, devendo ser viabilizada sua alteração. Todavia, a despeito de existir a possibilidade de sua alteração, existe uma parte do contrato do trabalho que é protegida de modo que, quanto mais se refiram à essência do contrato, mais intangíveis serão as cláusulas contratuais.

Essa intangibilidade surge em razão da necessidade de proteção ao empregado e, em decorrência desta característica, toda e qualquer alteração contratual deve observar os princípios justrabalhistas, sendo os basilares: princípio da proteção; princípio da norma mais favorável; princípio da imperatividade das normas trabalhistas; princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas; princípio da condição mais benéfica; princípio da inalterabilidade contratual lesiva; princípio da intangibilidade salarial; princípio da primazia da realizada sobre a forma; e princípio da continuidade da relação de emprego.

Assim, quando da alteração do contrato de trabalho, deve-se sempre observar a proteção do empregado, parte hipossuficiente na relação contratual. Nos ensinamentos de Aluysio Sampaio3:

“Válida é a alteração quando: (a) resulte da vontade de ambas as partes; (b) ainda assim, não resulte a alteração em prejuízos, diretos ou indiretos, ao empregado. Em hipótese alguma, pois, a alteração das condições contratuais poderá ocasionar prejuízos ao hipossuficiente. Alterado o contrato sem atenção ao disposto no artigo 468, comina-se a “pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”.

Assim, se questiona, as Medidas Provisórias 927 e 936 estão em sintonia com o Direito do Trabalho?

  1. Breves comentários e Conclusão

É possível verificar a tentativa do Estado em regulamentar as relações de trabalho neste período ímpar que o mundo atravessa, buscando evitar o aumento do desemprego.

Ocorre que algumas medidas adotadas são, no mínimo, questionáveis pelo fato de não resguardar direitos básicos do trabalhador.

Ao mesmo tempo em que o Estado busca preservar o emprego, ele acaba por desproteger o empregado. Exemplo disso é o desprestígio da atuação sindical, autorizando a realização de acordos individuais em temas que a própria Constituição previa a presença do Sindicato.

A Constituição da República (art. 7º, inciso XXVI) e a Convenção 98 da Organização Internacional do Trabalho (art. 4º) fomentam a presença dos sindicatos nas negociações entre os empregados e empregadores. Todavia, o que se obseva, é que as medidas provisórias vão em sentido oposto, desestimulando a presença dos sindicatos, chegando-se ao ponto de, por exemplo, penalizar o empregado, nos casos de redução de jornada e de salário por meio de convenção ou acordo coletivo em percentual superior àquele previsto para cálculo do benefício emergencial de preservação do emprego e da renda.

É de conhecimento notório que na relação jurídico-laboral as partes não estão em condições de igualdade para negociar livremente o contrato de trabalho, o que não raras vezes faz com que trabalhadores se submetam a condições de trabalho incompatíveis com os princípios da dignidade do trabalho.

E por causa deste desequilíbrio Rodrigo Dias da Fonseca e Cleber Martins Sales4 tecem que as negociações individuais devem ser encaradas e aplicadas com máximo cuidado, especialmente porque tais medidas provisórias podem ter sua constitucionalidade questionada.

Tal tema ainda será objeto de muito debate, e já encontramos na doutrina aqueles que defendem a inconstitucionalidade do artigo 2º da MP 927 e aqueles que entendem pela sua constitucionalidade.

Por ou lado, Antônio Umberto de Souza Júnior et al, afirma que o artigo 2º da MP 927 praticamente “rompe com o cerne de existência do Direito do Trabalho ao permitir a estipulação por mero acordo individual escrito”, reverenciados exclusivamente os limites da Constituição Federal, em especial, os direitos do artigo 7º e o direito à previdência social, sendo que tal “prevalência mostra-se completamente antijurídica, pois, o caráter cogente das normas trabalhistas não autoriza tal maxiflexibilização”.5

Por outro lado, Ana Cristina Costa Meireles, defende sua constitucionalidade, dizendo que esta encontra respaldo no artigo 444 da CLT:

Essa norma (artigo 2º da MP 927)  não é inteiramente nova no ordenamento jurídico, uma vez que aquela estabelecida no parágrafo único do art. 444 da CLT estabelece igual possibilidade para os denominados empregados hipersuficientes, quais sejam, aqueles que são portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

Desse modo, o que se compreende do texto do art. 2º da MP 927/2020 é a extensão da possibilidade contida no parágrafo único do art. 444 da CLT (restrita à categoria de empregados indicada) a todos os empregados, durante o estado de calamidade pública, com a ressalva expressa de que devem, neste último caso, ser respeitados os limites estabelecidos na Constituição.

Com isso, não se quer dizer que, na hipótese do parágrafo único do art. 444 da CLT, os limites constitucionais não devam ser respeitados; apenas se ressalta que, no caso do art. 2º da MP, esta previsão é expressa.

Sobre os limites dessa previsão de negociação individual, poderá haver dissenso na doutrina e na jurisprudência. No entanto, é fato que o acordo escrito que seja ajustado entre empregado e empregador deve respeitar os limites estabelecidos na Constituição Federal6.

Entretanto, insta insistir que ainda que a situação vivenciada pelo estado de calamidade decretado seja excepcional, a dignidade do trabalhador precisa ser resguardada, sendo respeitado seus direitos fundamentais, não se podendo admitir que o que for diretamente pactuado em contrato individual de trabalho se sobreponha ao que dispõe a Constituição Federal, a CLT e a Convenção 98 da OIT.

Não obstante a questionável possibilidade de se firmar acordos individuais em pontos tão sensíveis à dignidade do trabalhador, é importante ainda se questionar os parâmetros fixados pela Medida Provisória 936 para exigir ou dispensar a presença do Sindicato para a redução da jornada de trabalho.

Isso porque, conforme já visto, a presença do sindicato é dispensada nos casos em que o funcionário possui salário igual ou inferior a R$3.135,00 ou é portador de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (ou seja, em 2020, R$ 12.202,12). Ora, qual o fundamento lógico para o Governo ter estabelecido estes parâmetros? Por qual motivo um funcionário que recebe R$3.135,00 pode fazer um acordo coletivo e um funcionário que recebe R$3.136,00 não tem o mesmo direito?

O Supremo Tribuna Federal, por maioria, não referendou medida cautelar na ADI 6363 onde se buscava a suspensão da MP 936 sob o argumento de violação à Constituição Federal ao afastar a exigência da presença dos Sindicatos nas negociações para redução da jornada e salário, bem como para a suspensão do contrato de trabalho. Para o Supremo, “a garantia de irredutibilidade salarial apenas faz sentido se existir o direito ao trabalho em primeiro lugar. A situação de pandemia vem trazendo de forma crescente efeitos econômicos e sociais, como o desemprego e a falta de renda. Nesse contexto, a finalidade da medida provisória é a manutenção do emprego7”.

É inafastável que o cenário vivenciado pelo país exige a adoção de medidas excepcionais, visando preservar o emprego. Ocorre que não se pode relativizar princípios fundamentais ao direito do trabalho os quais garantem a proteção dos interesses dos trabalhadores.

É possível, ainda, questionar outros pontos das medidas privisórias. Um deles é referente a alteração unilateral do trabalho presencial para a modalidade do teletrabalho, violando a CLT, conforme já apresentamos. Não se questiona a necessidade do isolamento social para proteger a população mas é de notório conhecimento que a realização de homeoffice exige que o funcionário tenha perfil para tal tipo de trabalho bem como condições para o exercício da atividade laboral. Assim, impor a um funcionário o teletrabalho quando este não possui condições para exercê-lo poderá fazer com que o trabalho não seja desempenhado a contento, expondo o funcionário a situações constrangedoras.

A antecipação das férias e seu pagamento é outro ponto a ser questionado. Ora, a Constituição Federal prevê, em seu artigo 7º,  inciso XVII as regras para o gozo das férias e a Medida Provisória está em descompasso com o prescrito na Carta Magna que fixa a regra de que o gozo das férias deve ser acrescido com o terço remuneratório. Não obstante, o fato do período de férias ser concedido em plena pandemia, fazendo com o que o trabalhador fique confinado em casa não parece estar em sintonia com os fundamentos que norteiam o instituo de férias, quais sejam:

O fisiológico, relacionado ao cansaço do corpo e da mente; o econômico, no sentido de que o empregado descansado produz mais; o psicológico, que relaciona momentos de relaxamento com o equilíbrio mental; o cultural, segundo o qual o espírito do trabalhador, em momentos de descontração, está aberto a outras culturas; o político, como mecanismo de equilíbrio da relação entre empregador e trabalhador; e o social, que enfatiza o estreitamento do convívio familiar.8

Não se deve violar os direitos dos trabalhadores sob a justificativa de que atravessamos uma crise epidemiológica mundial e que, a qualquer custo, deve ser buscado a manutenção do emprego. É necessário, sim, equilibrar a manutenção do emprego com o respeito à dignidade do trabalhador.

É necessário se respeitar o trabalho justo, decente que, como bem nos ensina José Claudio Monteiro de Brito Filho, se trata de “um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde: ao direito ao trabalho; à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho; ao trabalho com condições justas, incluindo a remuneração, e que preservem sua saúde e segurança; à proibição do trabalho infantil; à liberdade sindical; e à proteção contra os riscos sociais.9

E, ainda, cumpre citar as palavras e Geonor Gilho e Ney Maranhão que afirmar que “raciocínios jurídicos ávidos por certezas científicas, neste momento, estarão descontextualizados da realidade contemporânea10.

E, sem dúvidas, debates sejam acadêmicos, sejam nos Tribunais, serão enfrentados ao longo dos anos. Todavia, é indiscutível que todas essas questões deverão sempre ser olhadas sob o prisma da dignidade do trabalhador.

É inegável que vivemos uma situação de força maior, excepcional e transitória, não prevista nas normas constitucionais que tratam sobre o Direito do Trabalho, onde todos devem colaborar para a manutenção da saúde e de patamares mínimos de sobrevivência. Mas, até que ponto, sob a justificativa da “preservação da ordem econômica e do emprego (art. 170 da Constituição Federal de 1988), com fundamento nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, da Constituição da República), a fim de se construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional e promover o bem de todos (art. 3º, incisos I, II e IV, da Constituição Federal de 1988)”, e de garantia do salário mínimo, conforme justifica CASSAR11, podemos admitir a violação aos direitos dos trabalhadores?

Afinal, qual é o limite?

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Notas:

  1. Até a publicação deste artigo, em 15/06/2020, a referida Medida Provisória não havia sido convertida em lei. A referida MP perderá validade em 19/07/2020.
  2. Como exemplos destes limites constitucionais, podemos citar:
  • Relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos.
  • Seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário.
  • Fundo de garantia do tempo de serviço.
  • Salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.
  • Piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho.
  • Irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.
  • Garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável.
  • Décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria.
  • Remuneração do trabalho noturno superior à do diurno.
  • Proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa.
  • Salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei.
  • Duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
  • Jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva.
  • Repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos.
  • Remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal.
  • Gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal.
  • Licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias.
  • Licença-paternidade, nos termos fixados em lei.
  • Aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei.
  • Adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.
  • Reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
  • Ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.
  • Proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
  • Proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.
  • Proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos.
  • Proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
  • Igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso.
  1. Citado em GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Direito do Trabalho: Direito Individual e Coletivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunis, 2015. p. 586
  2. FONSECA, Rodrigo Dias da; SALES, Cleber Martins. Comentários à medida provisória nº 927, de 22 de março de 2020. Análise artigo por artigo. São Paulo: Tirant lo Blanc, 2020. p. 11.
  3. SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de; GASPAR, Danilo Gonçalves; COELHO, Fabiano; MIZIARA, Raphael. Medida Provisória 927/2020. Comentada artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 53.
  4. MEIRELES, Ana Cristina Costa et AL. Medida Provisória 927/2020: Inovações em aspectos trabalhistas. Revista dos Tribunais, vol. 1016/2020, p. 281-298, Junho/2020.
  5. Informativo 973, disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo973.htm
  6. Disponível em https://tst.jusbrasil.com.br/noticias/2760896/ferias-direito-ao-descanso-reune-costume-lei-e-jurisprudencia
  7. BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Trabalho Decente: análise jurídica da exploração, trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004.
  8. FRANCO FILHO, Geonor de Sousa e MARANHÃO, Ney. Covid-19: Força Maior e Fato do Príncipe. Disponível em http://www.andt.org.br/f/COVID-19%20-%20FOR%C3%87A%20MAIOR%20E%20FATO%20DO%20PR%C3%8DNCIPE.pdf
  9. Apud GARCIA, GUSTAVO FILIPE BARBOSA. Coronavírus e Impactos na Redução da Jornada de Trabalho e de Salário e na Suspensão Contratual. Revista dos Tribunais | vol. 1017/2020 | Jul / 2020 | DTR\2020\7392. Disponivel em https://revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad82d9a0000017280a6fe9250e176c4&docguid=I15f8a3908f0b11eab789b354c977d16c&hitguid=I15f8a3908f0b11eab789b354c977d16c&spos=1&epos=1&td=250&context=10&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1#DTR.2020.7392-n13
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