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As peculiaridades do Direito de Família e o profissional do Direito

Como sabemos, o direito existe para organizar a sociedade impondo pautas de conduta, e regras de comportamento. Contudo, por maiores que sejam os esforços, é inconteste que o direito não consegue prever todas as situações que necessitam de regulamentação, pois, os fatos antecedem o direito.

Justamente em razão da lógica “primeiro os fatos e depois o direito”, é que não raramente nos deparamos com lacunas na legislação. Situações que ainda não foram regulamentadas.

Segundo Maria Berenice Dias (1) “A existência de lacunas no direito é decorrência lógica do sistema, e surge no momento da aplicação do direito a um caso sub judice não previsto pela ordem jurisdicional”.

Diante dessas circunstâncias, ergue-se a seguinte questão: se uma determinada situação não tem previsão legal, não há direitos? Obviamente que não.  No silêncio do legislador, surge o juiz que “cria” a lei para determinado caso que se apresenta em julgamento. É por isso que, quando provocado, o magistrado não pode excluir da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão de direito.

Tal atuação não se trata de ativismo judicial, mas de um dever do magistrado, consagrado pelo princípio da inafastabilidade  previsto no art. 5º, XXV da CF/88, art. 3º  e 140 do CPC. Na ausência de lei, cabe ao juiz fazer uso da analogia, costumes e princípios gerais de direito, tendo-se a proibição ao retrocesso como uma garantia constitucional.

E o que esse assunto tem a ver com o Direito das Famílias?

Os vínculos afetivos sempre existiram e ousamos afirmar que são eles que dão movimento à nossa sociedade. Por existirem há tanto tempo, é natural que sofram transformações no decorrer dos tempos.

Para se ter ideia do quanto mudam os conceitos e perspectivas quando falamos em Família, hoje, podemos dizer que não mais se fala em família hierárquica e patriarcal, mas em vínculos afetivos, em horizontalidade. No Código Civil de 1916, o conceito de família era limitado ao casamento indissociável, não havia união estável, existia distinção discriminatória entre filhos legítimos e ilegítimos, desigualdade entre homens e mulheres, dentre outras questões que, hoje, são vistas como uma verdadeira teratologia histórica.

Como os fatos antecedem o direito, há uma reconhecida  dificuldade em conseguir regulamentar o que chamamos de “Família Natural “ (a que preexiste ao Estado), afinal, a família é uma construção cultural em incessante transformação.

A dificuldade da regulamentação das relações afetivas também decorre do fato de se referirem a um ramo do direito que  trata sobre sentimentos, sobre a alma do ser humano, tem grande influência sobre aspectos comportamentais  e reflete na estrutura da sociedade. Como regulamentar algo tão plural e subjetivo?

Outra questão é que, quando falamos em família, estamos diante de uma esfera privada e íntima, e até que ponto caberia ao Estado invadir a privacidade e intimidade das pessoas?

A regulamentação que não consegue acompanhar a realidade e as implicações das relações familiares sobre a sociedade, sobretudo quando envolvemos menores em pleno desenvolvimento, os efeitos psicológicos de uma demanda familiar, dentre outras circunstâncias, exigem do profissional que queira atuar na área de Família, uma maior sensibilidade não apenas quanto aos interesses, mas especialmente quanto às necessidades da parte/cliente, despindo-se do que é tradicional para aceitar a possibilidade de uma mudança nos padrões pré-estabelecidos.

A cada dia que passa, penso que o profissional que atua no Direito de Família não deve ser mais aquele generalista, fomentador de controversas familiares, mas sim aquele que entende a necessidade e possibilidade de mudança, que bem sabe aplicar a razoabilidade, proporcionalidade e a mediação em prol não apenas de um processo, mas também da integridade emocional de todos os envolvidos, por maiores que sejam as mágoas cultivadas.

O conhecimento das normas, doutrina e jurisprudência são essenciais na atuação do direito de família, mas, diante da dinamicidade e dos efeitos que causam às almas das pessoas, o profissional desta área precisa ter um diferencial humano, que não é requisito para toda e qualquer área do direito.

 

Larissa Waldow
Sócia da Waldow & Dutra Advogados

 

FONTES BIBLIOGRÁFICAS

(1) DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11a Ed. São Paulo; Revista dos Tribunais, 2016, p. 32.

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