O “bom senso” nas decisões relacionadas à família e a aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade no direito de família
1. Introdução
Em época de instabilidade, a expressão mais utilizada ao se analisar as questões que envolvem as questões familiares é, sem dúvida, o “bom senso”.
Para solucionar questões relacionadas à visitação durante o confinamento, pede-se “bom senso”. Para solucionar problemas relacionados ao pagamento de pensão por pessoas que estão impedidas de trabalhar, pede-se “bom senso”.
Em face da prática vivenciada no Direito de Família, pode-se afirmar que é inegável que, tudo no Direito de Família deve ser resolvido com base no bom senso. Todavia, tal expressão é, subjetiva e, em algumas situações, pode gerar certa insegurança, afinal, o que é bom senso para um, pode não ser bom senso para o outro.
Por outro lado, quando tratamos de relações familiares, não raramente, tratamos de conflitos e é certo que o subjetivismo nestas circunstâncias pode trazer dificuldades no processo de harmonização e equilíbrio da convivência.
Pensando nisto, o presente trabalho tem por finalidade sugerir critérios objetivos que podem ser utilizados para sopesar o bom senso.
2. Bom senso e sua relação com a razoabilidade e o problema do subjetivismo
Bom senso significa: forma sensata e equilibrada de decidir e julgar; razoabilidade, prudência. Em outras palavras, é a forma de agir que não é afetada pelas paixões, que se pauta na razão e no equilíbrio, de acordo com os padrões e a moral [1].
De acordo com o dicionário jurídico de Pedro Nunes, bom senso, do latim sana mens, significa “modo de pensar, agir e julgar conforme a razão. Faculdade de raciocinar e bem discernir” [2]
É possível perceber, portanto, que “bom senso” nada mais é do que um sinônimo de razoabilidade. Nesse sentido:
O razoável está relacionado com a razão (ratio) e com o verbo reri (crer, julgar, pensar). O homem é animal razoável com meios e fins. A razão pode ser matemática ou filosófica, nesta há faculdades orientadoras do conhecimento da verdade. A razão é bom senso, prudência (Ferrater Mora, Dicionário de filosofia).
A despeito da razoabilidade ser o melhor parâmetro para legitimação de condutas nas relações familiares (em face da peculiaridade de cada caso) sua aplicabilidade não é simples. E é justamente em razão de sua abstração é que se diz que a razoabilidade é mais fácil de ser sentida do que conceituada[3].
Aliás, se difícil a sua conceituação, mais árdua é a fixação de critérios claros de argumentação que justifiquem e facilitem o controle intersubjetivo da utilização da razoabilidade, isto porque, paradoxalmente, a razoabilidade é relacionada aos “processos da argumentação racional e os seus resultados (e, nesse sentido, é razoável o que é provido de razão, mas igual adjetivação acompanha também um discurso que persuade pela validade dos argumentos sustentados)” (Gino Scaccia, 2000 apud Cassio Machado Cavali, 2005 [4]).
3. Os conceitos e a diferenciação entre Razoabilidade e Proporcionalidade
O Direito vê a razoabilidade como um princípio, ou seja, um “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (Melo, 1992 apud Bucci, 1996[5])
Tal princípio é comumente abordado no Direito juntamente com o princípio da proporcionalidade.
Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são estudados precipuamente na área do Direito Administrativo, onde são utilizados como limitadores da discricionariedade do agente publico. Entretanto, no Direito Privado, tais princípios são comumente utilizados como método interpretativo para apuração da legitimidade de determinada situação.
A despeito de existir diversas decisões judiciais e doutrina que entendem que o princípio da razoabilidade é sinônimo do princípio da proporcionalidade há aqueles que defendem a sua distinção. Neste último sentido, leciona didaticamente Cássio Machado Cavali:
Para ÁVILA, em ‘vez de estabelecer uma estrutura formal de eficácia, como é o caso do dever de proporcionalidade, o dever de razoabilidade impõe a observância da situação individual na determinação das consequências normativas. Enquanto a proporcionalidade consiste numa estrutura formal de relação meio-fim, a razoabilidade traduz uma condição material para a aplicação individual da justiça’. Assim, na análise da razoabilidade, deve-se verificar qual a relação da medida com a situação pessoal do indivíduo ou coletividade atingidos, para proibir-se o excesso no caso concreto.
O seu aspecto material é dado pelo recurso à isonomia ou ao próprio princípio do Estado de Direito, conforme intenta-se demonstrar com o seguinte exemplo: imagine-se determinada metrópole que sofre de sérios problemas de poluição do ar. Assim, para diminuir a poluição, estabelece-se uma lei que determina a proibição de utilização de veículos automotores que possuam certas placas em determinado dia da semana. Essa medida é, sem dúvida, adequada para atingir o fim almejado, pois reduz sensivelmente os níveis de emissão de poluentes na atmosfera. Ela também pode ser considerada necessária, pois não há outros meios menos gravosos para atingir-se o resultado esperado, – como, p. ex., exigir-se que todos os carros sejam equipados com catalisadores. Por fim, ela também é considerada proporcional em sentido estrito, pois para atingir-se o fim de proteger o meio ambiente ela não restringe demasiadamente a liberdade de locomoção. Essa medida, então, será tida como proporcional e, portanto, será constitucional.
No entanto, para as empresas que prestam serviços de transporte de pacientes em ambulâncias, essa medida, – já considerada proporcional -, será declarada inconstitucional, por violar o dever de razoabilidade. Isso porque o meio foi prescrito a todos, sem considerar características específicas de determinada categoria, com o que feriu o princípio da isonomia. Nesse caso, o meio prescrito para proteger-se o meio ambiente não poderá restringir a liberdade de locomoção das empresas de ambulâncias porque fere um bem jurídico inafastável dessa coletividade, de modo que essa restrição será tida como irrazoável, por não atender às expectativas de justiça nesse caso concreto.
Conquanto para se resolver a questão se tenha recorrido à isonomia, – que assume diversas funções no ordenamento -, é o postulado da razoabilidade que oferece a condição material de verificar-se qual a norma apta a satisfazer a expectativa de justiça nesse caso. Assim, a razoabilidade atua como um regulador da isonomia e, portanto, da própria idéia de justiça. [6]
Os princípios da razoabilidade e proporcionalidade ainda divergem quanto à origem histórica, pois a razoabilidade surgiu no Direito americano ao passo que a proporcionalidade surgiu do Direito alemão. Os princípios divergem, ainda, quanto à abrangência de sua aplicação, pois enquanto a razoabilidade tem por escopo apenas impedir aqueles atos que transgridam o senso comum, a proporcionalidade serve de eixo à prática de determinado ato. Por fim, razoabilidade é dotada de estrutura mais subjetiva; enquanto que a proporcionalidade é mais objetiva, em razão da clareza dos seus elementos/subprincípios que são aplicáveis ao caso concreto, quais sejam, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. [7]
No que diz respeito aos elementos ou subprincípios da proporcionalidade, leciona Marçal Justen Filho[8]:
A proporcionalidade se avalia sob três ângulos (ou subprincípios).
O primeiro aspecto é o da adequação ou compatibilidade com o fim buscado pela medida adotada. Exige-se que a solução seja apropriada à realização do fim. Essa exigência envolve um juízo de causalidade, aplicado em ordem inversa. Identifica-se o fim a atingir e se avalia se as providências cogitadas são aptas a produzi-lo. Violará o princípio da proporcionalidade, sob o prisma da adequação, a norma que consagrar uma imposição não apta a produzir o fim buscado.
Esse tipo de avaliação pressupõe duas ordens de providências. É imperioso, em primeiro lugar, identificar o fim concreto buscado. Não se admite que as competências administrativas sejam exercitadas sem identificação quanto aos objetivos a realizar.
Depois, deverão ser selecionadas as providências teoricamente disponíveis para realizar o fim visado. Isso poderá trazer a necessidade de recorrer ao conhecimento técnico-científico, tendo em vista a natureza da atividade considerada.
O segundo aspecto se relaciona à limitação da disciplina normativa ao mínimo necessário para assegurar o atingimento do fim buscado. Não é válido optar por solução que importe sacrifício desnecessário ou excessivo, ou seja, entre as diversas medidas que preencham os requisitos da adequação, deve ser escolhida aquela que produza a menor restrição possível aos diferentes interesses em jogo. Exercita-se, portanto, uma comparação entre as diversas alternativas adequadas e se elege a menos onerosa.
O terceiro aspecto é o da proporcionalidade em sentido restrito. A decisão, além de conveniente e menos danosa, necessita ser compatível com a ordem jurídica. Não basta constatar que a solução é apta a produzir certo resultado pretendido e que é a menos onerosa possível. Ademais, será inválida a providência incompatível com outros valores tutelados pelo ordenamento jurídico. A proporcionalidade em sentido restrito exclui a validade de solução que torne inútil a existência de outras normas jurídicas.
Embora, na prática, não seja comum distinguir a razoabilidade da proporcionalidade, a utilização conjunta e, ao mesmo tempo, discriminada de ambos parece contribuir para o não esvaziamento do princípio da razoabilidade face a sua abstração, bem como contribuir para uma melhor análise da legitimidade de atos, condutas, dentre outros.
4. A aplicação conjunta dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Concretude do princípio da razoabilidade e uma maior segurança no processo interpretativo da legitimidade
Conforme já mencionado, a razoabilidade, a despeito da sua relevância, é desprovida de elementos objetivos que possam direcionar sua aplicação e conferir maior segurança em processos interpretativos. Isso porque, o que é razoável para um, pode não ser razoável para o outro.
Contudo, se aplicada juntamente com o princípio da proporcionalidade, a razoabilidade não apenas será capaz de refletir segurança em razão do alcance de uma maior objetividade, mas, sobretudo, conferirá maior primor na análise da legitimidade.
Para tanto, o que se sugere é que, na análise interpretativa quanto à legitimidade de determinada solução, por exemplo, primeiramente seja verificado setal solução é proporcional, para em seguida (e não antes), verificar se é razoável.
Em outras palavras, primeiramente deve-se analisar se o ato é adequado, necessário e proporcional (em sentido estrito). Caso o ato preencha todos esses requisites, será possível analisar objetivamente a sua razoabilidade. Para tanto, deve-se verificar o ato na perspectiva da situação individualmente analisada.
Assim, se a análise começar pela razoabilidade, ela será subjetiva, enquanto que, se a proporcionalidade for avaliada primeiro, tal circunstância acabará permitindo uma análise mais segura e objetiva no que diz respeito à razoabilidade.
Observe que essa forma de interpretação, ao utilizar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade de forma conjunta, acaba por conferir maior confiança durante a aferição da legitimidade. Afinal, não será utilizado somente um, mas, sim, dois filtros: – primeiro a proporcionalidade e, depois, a razoabilidade.
5. Questão prática. Suspensão de Visitas.
Na busca pelo “bom senso”, nas relações familiares, tem-se que a aplicação conjunta dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade é perfeitamente possível.
Assim, por exemplo, em casos em que se cogita a suspensão de visitas ao filho por um dos genitores, em razão da orientação de confinamento por causa do COVID-19, tendo em vista sua exposição diária a situações de risco/contaminação, o que poderia ser considerado “bom senso”?
Vejamos.
Em um primeiro momento, conforme já assinalado, o que deve ser analisado é a proporcionalidade.
Uma forma de elucidar se uma solução passa pelo exame da proporcionalidade é a utilização de perguntas para conferir se os critérios da adequação necessidade e proporcionalidade em sentido estrito estão presentes no caso em análise. Assim, deve-se perguntar: a) A solução utilizada é adequada para fomentar o fim?; b) A solução considerada adequada (que consegue promover o fim) é mesmo imprescindível para a promoção de um fim? Caso afirmativo, é ela a menos restritiva de direitos? c) As vantagens do fim são maiores do que as desvantagens do meio?[9]
Assim, no caso hipotético, a suspensão das visitas para proteção da saúde do menor e da família poderia ser considerada adequada para o fim almejado. Ademais, pode ser considerada imprescindível, em face da situação de risco diária vivenciada por um dos genitores. A medida também pode ser considerada a menos restritiva, pois, embora se proíba o contato físico, é possível utilizar a videoconferência entre o genitor e seu filho e, ao mesmo tempo, primar pela sua saúde. Por fim, a vantagem de se manter a saúde do menor é considerada maior do que a desvantagem de se privar a convivência física, mormente se considerarmos que essa privação é temporária e há outros meios de contato que podem ser utilizados para amenizar os efeitos da ausência física.
Assim, a privação do convívio entre um genitor, que é medico e trabalha em uma UTI, por exemplo, pode ser considerado proporcional e, também razoável, levando-se em consideração as peculiaridades vivenciadas pelo genitor. Contudo, a mesma solução de suspensão das visitas, não poderia ser considerada razoável, por exemplo, nas hipóteses em que o genitor não exerce atividade de risco, não sofreu exposição, adota todas as cautelas de prevenção e apenas vê a criança em finais de semana alternados. Neste caso, verificado que risco de contaminação é baixo, não há razoabilidade na privação da convivência.
Em circunstâncias normais, a suspensão das visitas configuraria situação absurda de privação de direitos. Entretanto, se analisarmos os critérios de proporcionalidade atrelada às circunstâncias peculiares do exemplo acima, a privação deixa de ser absurda e passa a ser mera questão de um bom senso.
6. . Conclusão
Para a busca de bom senso nas soluções de conflitos familiares, levando-se em conta as peculiaridades de cada caso, é indispensável que elas sejam filtradas, conjunta e respectivamente, pelos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Embora tais filtros ainda possam admitir certo subjetivismo na sua aplicação, não há dúvidas que ele é reduzido. O aumento da objetividade na convergência de soluções confere maior segurança jurídica.
A utilização do filtro da proporcionalidade e razoabilidade, nesta ordem e em conjunto, impede o esvaziamento do princípio da razoabilidade, cuja aplicação é de extrema importância nas relações familiares em que a variedade e a peculiaridade de cada caso não podem ser ignoradas.
Não obstante, a utilização conjunta dos princípios como um duplo filtro confere maior primor na análise de legitimidade de atos, fatos, soluções etc.
Larissa Waldow
Sócia da Waldow & Dutra Advogados
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
[1] Disponível em https://www.dicio.com.br/bom-senso/, acesso em 07/04/2020.
[2] NUNES, Pedro. Dicionário de tecnoligia jurídica. 13. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 170.
[3] BARROSO, Luis Roberto. OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL. Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 23/1998 | p. 65 – 78 | Abr – Jun / 1998 | DTR\1998\191.
[4] CAVALLI, Cássio Machado. A COMPREENSÃO JURÍDICA DO DEVER DE RAZOABILIDADE, Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 50/2005 | p. 220 – 243 | Jan – Mar / 2005 | DTR\2005\61.
[5] BUCCI, Maria Paula Dallari. O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE EM APOIO À LEGALIDADE. Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 16/1996 | p. 173 – 177 | Jul – Set / 1996 | DTR\1996\291.
[6] CAVALLI, Cássio Machado. A COMPREENSÃO JURÍDICA DO DEVER DE RAZOABILIDADE, Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 50/2005 | p. 220 – 243 | Jan – Mar / 2005 | DF TR\2005\61.
[7] GOMES, Anderson Ricardo. OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO. Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 82/2013 | p. 275 – 312 | Jan – Mar / 2013 | DTR\2013\474.
[8] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Ed. 2018. Revista dos Tribunais. E-book disponível em https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/91049397/v13/document/157101016/anchor/a-157101016, acesso em 20/06/2020.
[9] REVISITANDO A PROPORCIONALIDADE: DA ANÁLISE DOS SEUS POSSÍVEIS USOS À CRÍTICA DE SEU ABUSO NO DIREITO BRASILEIRO. Mártin Haeberlin1 Revista da AJURIS – Porto Alegre, v. 45, n. 145, Dezembro, 2018, disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-AJURIS_n.145.07.pdf, acesso em 20/06/2020.
[10] Paulo Friedrich Wilhelm Löwenthal, RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE: DISTINÇÕES E SEMELHANÇAS
Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 81/2012 | p. 175 – 195 | Out – Dez / 2012 | DTR\2012\451047.